sexta-feira, 12 de junho de 2015

Os Demonios De Allen Haloween

 

Os demônios no rap Allen Halloween

O rapper não precisa de imaginação para escrever — episódios de crime e histórias de pobreza são inspirados na sua própria vida. Não há filtros na sua música. Esta é a sua fórmula, que voltou a aplicar em “Híbrido”, o novo álbum lançado em Agosto de 2014. Garante que é a última vez que o faz. Aos 34 anos, está pronto para deixar a música e dedicar-se a algo que considera mais importante: ser testemunha de Jeová.

Sentado na esplanada de um café no bairro da Codivel, em Odivelas, Allen Halloween discute com dois amigos a um volume ímpar numa praceta rodeada por prédios com mais de dez andares. Os três tentam chegar a um consenso sobre o que é que se deve fazer quando se levanta uma arma contra alguém. Quando a mira encontra o outro, como é que se deve agir? Como é que se consegue o respeito dele? Até onde é legítimo ir? O que é mais ético? Será que vale mesmo a pena disparar?
Cada um dos três aventa a sua teoria, mas nenhum consegue ir para lá da premissa – quando chega a altura de justificá-la, já os outros dois lhe atropelaram o discurso com a voz ainda mais alta. Passa das 21h00 e o sol mal brilha sobre os tejadilhos das dezenas de carros aqui estacionados. Ninguém presta atenção à televisão onde a Rússia e a Argélia empatam a um golo num jogo para a fase de grupos do Mundial de futebol no Brasil.

Há um momento em que o volume da discussão acalma e Halloween, com sentido de oportunidade, aproveita o silêncio para dar a sua opinião. Inclina-se para a frente e apoia os cotovelos sobre os joelhos. A camisa que traz vestida, com riscas vermelhas sobre um fundo preto, fica-lhe apertada, como se pode ver nos ombros largos e relaxados que forçam o tecido. Halloween eleva a voz, que, como nas suas músicas, soa grave e das profundezas da garganta, quase cavernosa. Os esses saem-lhe num assobio de ar, um tique verbal ajudado pela falha que lhe corta um dos dentes da frente pela metade, na diagonal.

“Mano, é assim, eu vou dizer-te uma cena”, começa, ao mesmo tempo que toca no braço de Kangoma, que está à sua esquerda. Também conhecido como Lucyfer ou Lucy, é um dos rappers que sobe com ele ao palco em todos os concertos. Do outro lado da mesa de Halloween está Capanga, amigo de longa data. Os dois ouvem-no com atenção.
“Um homem quando puxa de uma arma quer marcar posição. É ou não é?”
“É”, respondem-lhe os dois em uníssono.

“Pronto. Então tu quando levantas o shot para o gajo, se calhar nem queres mesmo disparar para ele. Pensa bem, mano. A coisa pode correr mal. Se dá confusão ainda apanhas saco, vais dentro não sei quantos anos assim à toa. Não vale a pena. Vais resolver aquilo ao tiro quando o mambo pode ficar feito com umas pêras? Tu só estás ali a levantar a arma para marcar a tua posição e para garantires que tens o respeito do outro, mano. E aí se o gajo começar a correr de ti como um cão vais atirar para quê? Se ele fugiu é porque tem medo, tem respeito. Já provaste o que tinhas a provar, já não tens mais nada para fazer ali, o teu dia está feito.”

Capanga, que traz vestida uma camisola preta estampada com a letra de uma música dos Racionais MC’s, nome maior do hip hop brasileiro, faz que sim com a cabeça. Kangoma, cujas tranças são encimadas por um boné preto com a inscrição “Homies” em branco, a imitar o logótipo da marca de luxo francesa “Hermès”, segue as palavras de Halloween com atenção, embora raramente tire os olhos do tablet que tem nas mãos.

“Mas há uma coisa que também é verdade… Mesmo que tu não queiras dar um tiro no gajo, se ele começar a fazer peito para ti, tu aí já começas a mudar de ideias, mano… Ah, ah! O jogo aí já vira. Ficas fodido, mano, ficas logo a pensar… ‘Este gajo nem com um shot na mão me respeita?’ Foda-se, tu aí já só queres é furá-lo, mesmo! O gajo tá a obrigar-te a isso! Aí tens de dar, só por uma questão de orgulho. É ou não é?”

Kangoma pousa o tablet na mesa de plástico vermelha, patrocinada por uma marca de cerveja nacional, e responde-lhe com a voz ainda mais alta, rindo a cada palavra que diz. “Mesmo a sério, mano, se o madjé começa a estrilhar, então é mesmo para levar! Ficas logo sem escolha, não podes deixar que te faltem assim ao respeito…”
Allen interrompe-o. “É só por causa disso que eu ainda estou vivo, mano. Eu sou granda cobarde, mas granda cobarde mesmo. Eu se vejo uma arma apontada para mim levanto os braços e vou-me logo embora, mano! Ah, ah! Tu achas mesmo que eu vou fazer frente a um gajo que tem um shot na mão? Nem pensar, mãos ao alto. Não há heróis, mano! Nem pensar, eu fujo logo… Amanhã há mais!”

Kangoma irrompe num bruaá de gargalhadas e Capanga, menos vocal, ri-se de forma discreta. Como costuma fazer após cada piada que diz, Allen lança um som com a boca. Intransponível para o domínio onomatopeico, pode ser descrito como tendo o timbre do Pato Donald e as vibrações de um reco-reco, efeito que o rapper consegue ao fazer explodir bolhas de ar no céu da boca e contra os dentes. A supracitada falha no dente é essencial para que isto aconteça.

Sem delongas, a conversa vai avançando para outros temas, cruzando futebol, política, religião e música. O tom parece ser sempre o mesmo, alto e histriónico, despreocupado com quem possa ouvir a conversa. Há quem passe e se junte, alargando o círculo de cadeiras de plástico em redor da mesa onde Halloween repousa o copo com cerveja e Martini. Quando chegam, cumprimentam Allen com um aperto de mão em que primeiro a palma da mão direita bate na do outro. De seguida faz-se o mesmo movimento, mas com o punho fechado. O gesto só termina quando este vai ao peito, assentando por cima do coração.

É também assim que se despede dos amigos, já quase à 01h00. Tem a mulher e os dois filhos à espera, e amanhã é dia de voltar a preparar o seu novo álbum, “Híbrido”. Além disso, tem ensaio com o rapper General D, um dos primeiros nomes do hip hop nacional, que o convidou para actuar num concerto na praça do Intendente, em Lisboa.

36 facadas

A maior parte das alcunhas costuma ter a mesma génese. Por norma, um grupo, consoante as suas brainstorming, chega a um nome ideal.

dinâmicas e características, destaca determinado indivíduo. Pouco importa se o merecedor do novo epíteto pertence ou não a esta trupe.

Por outro lado, é essencial que este tenha algo que o destaque dos restantes, caso contrário o seu nome civil seria suficiente e evitaria possíveis confusões. Só que há algo nesse sujeito que o faz merecer um cognome, seja este engraçado, elogioso ou jocoso. As bases de partida que inspiram uma alcunha não vão muito além de atributos físicos, traços de personalidade ou uma estória em que o indivíduo em questão se tenha destacado. É a partir daqui que surge o desafio para o grupo, sobre o qual recai a tarefa de encontrar e atribuir com sucesso uma alcunha. A alcunha é fruto da imaginação colectiva, que, após um processo mais ou menos intenso de

Não foi assim com Allen Pires Sanhá na hora em que se tornou Halloween.
Era 1996 e Allen tinha 13 anos, altura em que vivia com a mãe e os três irmãos no Casal da Paradela, um antigo bairro de barracas no concelho de Odivelas. Moravam numa casa de madeira, tosca e pequena, onde por vezes a chuva entrava sem grandes dificuldades. Embora tivessem electricidade, graças a uma puxada arrendada a um vizinho por “dez contos” mensais, a barraca não era dotada de água canalizada. Assim, sempre que precisavam de cozinhar, tomar banho ou matar a sede, tinham de recorrer a um poço.

Numa das tardes em que essa tarefa lhe coube, Allen pegou no balde e percorreu os cerca de 200 metros que separavam a sua casa do poço. Quando lá chegou, como que a dobrar a esquina, viu dois homens deitados no chão, um por cima do outro. Foi tudo concentrado em meros segundos, não mais do que cinco, mas Allen reparou que aquele que estava em cima era um vizinho seu. Este, munido de uma faca, tentava matar o homem que tinha por baixo. Allen contou quatro facadas. Em terror, fugiu a tempo de não ver a quinta. Correu para casa e, com a voz ainda não totalmente formada pela puberdade, chamou estridentemente pela mãe. “Ó mãããããe! O mããããe! O Varela está a matar o amigo dele!”

Mais tarde, todo o bairro ficou a saber: o homicida, que deu 36 facadas no amigo por achar que ele tinha um caso com a sua mulher, foi condenado a 17 anos de prisão por homicídio.
“Tu quando tens 13 anos e vês aquilo ficas marcado, não há como fugir. No princípio fiquei borrado com aquilo, parecia que tinha visto um demónio. Eu lembro-me de olhar bem para a cara do gajo, ele estava com uma cara de morte, ‘tás a ver? Via-se que ele estava mesmo com vontade de matar, só queria saber daquilo. São coisas que te metem a pensar. Com 13 anos, depois de ver isto, eu pensava que já tinha visto tudo. Depois o tempo passa e aquilo ainda deixa a marca. E a partir dali fiquei com um fascínio por facas e pistolas e merdas dessas.”
A partir daí, Allen Pires Sanhá escolheu a sua própria alcunha. Depois de fazer um inventário com os nomes mais tenebrosos e sombrios de que se lembrou, escolheu um. Daí em diante, o seu nome seria Halloween.

Não é exagero dizer que há um Allen antes desse incidente e outro que dele surgiu. O primeiro nasceu em 1980 em Bissau, capital da Guiné-Bissau, numa família que era rica o suficiente para habitar uma vivenda com dois andares, ladeada por um anexo onde viviam 10 empregados. A maior parte das criadas eram primas distantes que viviam fora de Bissau e que pediam à mãe de Allen um quarto em troca de trabalho. Havia lavandeiras, cozinheiras, motorista e uma pessoa encarregada de levar as crianças a brincar ou ao cinema. A mãe trabalhava num banco e o pai saiu de cena quando partiu para estudar Economia numa universidade em Leipzig, a segunda maior cidade da então Alemanha de Leste.

Por razões que parecem escapar a Allen, a sua mãe escolheu deixar o conforto que tinha em Bissau para arriscar a sua sorte em Lisboa. Quando chegou à capital portuguesa com os dois filhos, a família instalou-se num apartamento que em nada se assemelhava ao estilo de vida que tinham em Bissau. “Era uma casa de imigrantes perto do jardim da Estrela… Aquilo parecia ser uma cena meio ilegal, com pessoas por todo o lado. No mesmo quarto dormiam algumas 10 pessoas, todos a monte.” Allen tinha quatro anos e esta foi a primeira de muitas paragens que a família fez, sempre em Lisboa ou nos arredores. Não foram tempos fáceis, como Allen Halloween canta na faixa “Jardim à beira mar plantado”, do seu segundo álbum, “Árvore Kriminal”: “Lembras-te mamã, quando pedíamos esmola, no bando do jardim da igreja da Póvoa?”

Só quando Allen já tinha nove anos é que a família se instalou no Casal da Paradela, um bairro do qual só sobram ruínas de uma única casa: a de Varela, entretanto regressado enquanto cumpre o último ano de prisão em regime de liberdade condicional. Quando se pergunta a Halloween que influência aquele bairro teve na sua adolescência, a resposta é honesta: “Quando eu andava neste gueto um gajo andava bem calmo. Um gajo quando começou mais na má vida foi ali no Barruncho…”
A Quinta do Barruncho fica a pouco mais de cinco minutos de carro do Casal da Paradela. O Barruncho continua a ser um bairro de barracas, a maior parte delas de tijolo e chapa. As ruas são apertadas e tortas, com o piso a alternar entre a terra batid

a, algum cimento e telhas partidas. Os carros ficam todos à entrada – incluindo os da polícia.
“Naquele tempo quando um gajo arranjava problemas com a polícia por andar a fazer merda, era normal ir lá para o Barruncho passar uma temporada, só para se esconder. A polícia nem entrava lá, um gajo lá estava bem escondido, bem seguro. O Barruncho é como qualquer outro gueto. É um sítio onde estás à parte, onde não há lei, não há Estado. No gueto tu estás entregue a ti mesmo, e por isso podes fazer tudo o que te apetece. Só que depois há o outro lado. Tudo o que pode acontecer, imagina qualquer coisa, pode acontecer-te no gueto. Estás sujeito a isso. No gueto podes matar e ser morto.”

Quando começou a frequentar o Barruncho, Halloween já era o nome pelo qual respondia mais frequentemente. Contava 16 anos e tinha deixado para trás das costas os tempos em que dava satisfações à mãe. Passou a ser ele o autor das regras do seu dia a dia. “Imagina uma mãe com quatro filhos”, diz. “Ela não consegue trabalhar e dar conta deles todos… Eu sempre tive liberdade para fazer o que me apetecia e voltava a casa à hora que queria.” Foi nessa altura que deu os primeiros passos no mundo do crime e da delinquência. Fazia-o como se não tivesse outra opção e não conhecesse outra realidade. Já mais do que uma alcunha, tinha um estatuto a manter. Por isso, quando partia para o crime, fazia-o mais para manter a sua autoridade do que por necessidade.

Ao mesmo tempo que se iniciava na “má vida”, Allen começava também a entrar no circuito do hip hop de rua em Odivelas. Tímido e reservado, começou por ouvir os mais velhos em battles e improvisos que achava serem bons, mas que não tinha como inalcançáveis. Aos poucos a coragem subiu-lhe à cabeça e, lembrando-se de algumas citações das composições que escrevia na escola, começou a destacar-se. Tal como a professora que lhe elogiava a escrita e pedia que ele lesse o texto para o resto da turma, os “mais velhos” começaram a deixá-lo participar nas sessões de rua. Pouco demorou até ter as costas aquecidas por estes, que passaram a levá-lo a bairros rivais para mostrarem o puto guineense que num bom dia conseguia dar um improviso de meia hora.

“Eu comecei a ser levado a sério porque não fazia o mesmo que os outros. Não chegava lá e começava a dizer ‘eu faço e aconteço’. Não, eu falava de mim, da realidade que era a minha e dos tropas que estavam ali à volta. Eu nunca gostei do rap de egotrip. Eu falo da minha vida, que é o que eu conheço. Não vou estar ali a dizer isto e aquilo da mãe do outro se eu nem a conheço. Era mesmo raro entrar no egotrip, mas quando entrava nem era por aí. Era mesmo pela violência, do género ‘vou aí ao teu bairro com a caçadeira e parto tudo’. Porque o nosso ambiente era esse.”

Foi nesses anos que Halloween se inspirou para escrever a música “Um dia na vida de um drede de 16 anos”, aquele que é possivelmente os seu tema mais conhecido. Só no YouTube, os vídeos onde esta música pode ser ouvida somam quase 2 milhões de visualizações. São mais de dez minutos com um beat que tem tanto de simples como de sombrio, em que o rapper descreve os traços gerais daquilo que foi a sua vida durante mais de uma década. Apresentando-se como um “vândalo suburbano”, cujo quotidiano é pautado por violência e delinquência, o sujeito fala daquilo que é um dia normal para si. É abordado pela PSP (“Porcos Seguem Pretos”) e é prontamente detido na esquadra local por desrespeito à autoridade. A ideia de lá passar a noite até parece agradar-lhe,
mesmo que reconheça alguma ironia nisso, pois canta: “Xadrez para mim é uma suite, paredes com cimento na minha casa não existe, é triste.” Às 03h00 ganha a liberdade e vai para casa, mas lá chegado não consegue dormir. Tudo por causa da ressaca: “Não aguento, nigga, a agonia é muito grande. Preciso de qualquer merda para mandar para o sangue. Gás ou gasolina, dá-me que eu fumo.

 Alguém me faz um pica ou eu corto os pulsos, juro…” Pouco demora até sair de casa com amigos, para ir comprar um charro. Corre bem o primeiro contacto com Dino, um traficante de “óculos escuros, fato, gravata, charuto cubano, mala à diplomata” que só circula de Mercedes. Mas quando vomita acidentalmente dentro do carro deste, é expulso à pancada com os amigos, que acabam por deixá-lo sozinho e inconsciente no chão. Acorda horas mais tarde, com ajuda de uma mulher, a quem, em vez de agradecer, rouba o fio, aliança e a carteira.

“Aquilo que tu ouves no ‘Um dia na vida de um drede de 16 anos’ é uma rotina que eu começo a criar aos 17 ou 18 anos. É naquela idade em que começas a ter vícios, queres beber, queres fumar, queres droga… E tens de arranjar dinheiro para isso tudo, custe o que custar (…). Mas o que está nessa música são coisas bem fracas, bem calmas, né?… Tudo bem que eu nunca assaltei nenhuma velha, mas o resto que está lá eu devo ter feito tudo, ou quase tudo. Mas aquilo são cenas bem leves… Aquilo é como se fosse o minorca que hoje em dia a gente manda ir buscar cerveja.”



“Fuck y’all yo”

Foram poucas as vezes em que Halloween teve um trabalho. Chegou a ir para as obras, mas jurou que call center; foi operário numa fábrica onde moldava resistências para chaleiras e grelhadores. Nada disto funcionou tão bem como o tráfico de droga – hoje em dia, diz, já chegou a uma altura “em que a droga deixou de dar”.
nunca mais voltava depois de ter ficado uma tarde a raspar um telhado; trabalhou num
É com algum orgulho que Halloween diz que o crime em que esteve envolvido durante anos não era “bandidagem de meia tigela”, o que só o tornaria alvo de chacota no bairro, garante.
“A minha cena não era roubar, a minha cena era mesmo a violência entre bairros. Tudo por respeito (…). Às vezes um gajo ia longe de mais… Não foram poucas as vezes em que um gajo se descontrolou. Eu hoje penso e acho que nunca magoei ninguém que não tivesse nada a ver com os nossos beefs. Acho que quem sofreu foi porque entrou no nosso espaço.”

As quezílias estendiam-se ao mundo do hip hop, onde Halloween foi criando anti-corpos e ganhou inimigos. Numa música que publicou no YouTube em 2007, chamada “Fuck y’all yo”, o guineense faz pouco de vários rappers do panorama nacional. Conhecidos como “beefs”, estas músicas costumam ser dirigidas a apenas um rapper com quem se tem uma disputa. Halloween, porém, quando gravou a “Fuck y’all yo” apontou a mira a vários artistas: NBC, Black Mastah, Sam the Kid, Lancelot e Tekilla. Algumas referências são mais subtis do que outras, mas muitos acusaram o toque e responderam-lhe com novas músicas – nenhuma delas com a mesma acutilância do que “Fuck y’all yo”.
Por vezes, explica, os “beefs” passam para lá da música.
“As coisas só acontecem porque de vez em quando aparecem-te pessoas que vêm testar a tua febre. Eu nunca me descoso todo nos meus sons, as dicas que eu deixo lá nunca podem ser muito literais, porque assim não tem arte, não é? As pessoas para quem aquilo está escrito sabem muito bem quem elas são. Há rappers por aí a quem eu já tirei sangue, há outros que eu já espanquei. Fica por aqui, porque eu não gosto muito de espalhar, isso é vaidade. As coisas que se passam entre nós ficam entre nós. Aqui ganha-se e perde-se.”

Allen garante ainda só estar vivo por mera sorte – nenhuma das seis facadas de que ainda conserva as cicatrizes foram graves. E também gosta de acreditar que o seu hábito antes de cada assalto, luta, ou qualquer outra peripécia – rezar – o ajudava. Quando chegava a hora, fechava os olhos, levantava a cabeça e com as mãos em forma de oração pedia a Deus: “Meu Senhor, por favor, perdoai-me todos os meus pecados, e ajudai-me neste momento, fazei com que tudo corra bem.”
Em 2006, Halloween lançou o seu álbum de estreia, “O projecto de Mary Witch”. As músicas foram escritas a partir de 1999 e alguns dosbeats foram feitos num videojogo de Playstation, o Music 2000. “Eu na altura não me preocupei muito com a qualidade do som e com essas merdas todas, porque eu sabia que a rima estava mesmo pesada, e era isso que me interessava.”

Não havia nada de semelhante ao trabalho de Halloween em todo o hip hop português daquela altura. O resultado final era único, com letras que pouco ou nada fugiam ao dia a dia de Halloween, sempre apoiadas por beats obscuramente pesados, com a carga a dividir-se em partes iguais de angústia e revolta. Até a voz era diferente. Ao invés do que era norma no hip hop nacional, em que os rappers cantavam de forma rápida e nasalada, Halloween fazia-o com a lentidão e o arrasto bem presentes na voz inimitavelmente grave.

À medida que o álbum se espalhava pela Internet, Halloween começou a ser chamado para dar concertos de Norte a Sul do país. Embora não chegasse para viver apenas dos proveitos da música, o rapper passou a ser seguido por uma fiel legião de fãs. Aos poucos, a música de Halloween foi passando para outros países lusófonos. O convite para actuar em Angola surgiu com naturalidade, tamanha é a quantidade de fãs que tem naquele país. O estatuto de estrela internacional só ajudou à histeria. Nunca irá esquecer o concerto que deu no Cinema Karl Marx, em Luanda, em que um fã chorou durante o concerto inteiro.

Apesar de tudo, pouco se sabia deste rapper que até então tinha escapado à maior parte dos media. Foi ainda nesta fase que ele deu um concerto no bairro da Cova da Moura, na Damaia. Assim que lá chegou, começou um tiroteio. Houve dois feridos, nomeadamente um homem que foi atingido no preciso momento em que entrava no recinto do concerto, lado a lado com Halloween – o que o levou a pensar que ele era o alvo e que para sua sorte o atirador teria tido má pontaria. Em dúvida, fugiu logo a seguir ao incidente e o concerto não aconteceu. Quando a história se espalhou, ganhou um novo detalhe em que muitos acreditaram: o Halloween tinha morrido naquela noite.
Enquanto estava “morto”, o rapper tentava, na verdade, encontrar o seu espaço. Em 2006 conheceu Jeremy, antiga fundadora do grupo dehip hop feminino Jamal, com quem começou uma relação que permanece até hoje. Parecia que a sua vida estava a dar voltas que o tornavam mais estável e responsável.

“De 2006 até 2011 passei por várias coisas. Fui montar a minha casa… Fui ter filhos… Foi uma altura muito importante para mim, porque eu hoje olho bem e vejo que até essa altura, que é mais ou menos até eu ter lançado o meu primeiro álbum, eu estava sozinho no mundo. Não tinha o meu spot, ‘tás a ver? Tanto dormia uma noite na casa da minha mãe como depois passava o resto do mês na casa de um sócio no Barruncho. E depois até podia bazar para o Algarve e ficar lá uma temporada na casa de outro mano.”

Em 2008 saiu de Odivelas e foi viver para o Cais do Sodré com a mulher e os filhos. Não demorou a enturmar-se naquela área – frequentava o Bairro Alto e o miradouro de Santa Catarina (conhecido por Adamastor) numa altura em que, ri-se, ainda “vivia de várias coisas”. Nesse tempo começou a gravar o seu segundo álbum num estúdio caseiro naquela zona de Lisboa. Quando já tinha tudo quase terminado, em 2009, o proprietário do estúdio roubou-lhe um microfone e, mais importante, o computador portátil onde estavam guardadas as músicas que contava incluir no disco.

Assim que ficou a saber que o ladrão fizera questão de se gabar do feito, inclusive dizendo que tinha apagado do computador músicas que ele já tinha praticamente fechadas, sentiu o orgulho ferido e falou com um conhecido para executar um plano de resgate dos bens roubados. “O gajo cruzou o meu caminho e eu fui a casa dele pisá-lo e humilhá-lo.”
Allen, que diz ter ido desarmado, admite que o indivíduo com quem combinou o golpe levava uma pistola. Bateram à porta do dono do estúdio e este, quando a abriu, foi imediatamente baleado na perna. O caminho estava aberto para Halloween ir buscar os seus haveres, e o seu parceiro teria uma oportunidade para assaltar a casa enquanto o produtor estava estendido no chão.

rapper guineense pegou na família e voltou para Odivelas – a morada exacta é sabida por poucos. Saiu do Cais do Sodré em boa hora: poucos dias depois, homens pagos pelo dono do estúdio terão irrompido porta dentro com armas prontas a disparar. Quando se aperceberam que Allen já tinha fugido, espalharam ácido e lixívia pela casa, da qual partiram a pouca mobília que sobrava.
Quando o segundo álbum finalmente saiu, em Outubro de 2011, a recepção da crítica quase não podia ter sido melhor. Com uma sonoridade mais polida, conseguida sem que o rapper tivesse aberto mão do tom sujo do seu álbum de estreia, “Árvore Kriminal” confirmou Allen Halloween como um nome inamovível do hip hop português. A revista “Blitz” destacou-lhe os “beats simples e povoados de espessura cinemática” e o “pulso de cronista experimentado”, considerando o seu último trabalho como o décimo melhor álbum português do ano. Ainda mais generoso, o suplemento cultural do “Público”, o “Ípsilon”, colocou-o em 7º lugar na lista dos melhores discos do ano – de todos os artistas portugueses foi o que alcançou melhor classificação.

 O elogio era óbvio: “Halloween é um criador laborioso nos crescendos narrativos, tão capaz de rimar a violência da vida de todos os dias que não passa em horário nobre (…), quanto de surgir trespassado por uma angústia inultrapassável (…) A ‘Árvore Kriminal’ é um álbum indispensável no 2011 deste país.”

O público seguiu a crítica. Halloween passou de um rapper de culto para um artista com nome na praça. Algumas estações de rádio começaram a passar as suas músicas, com especial ênfase no single “Drunfos”. E se antes de “Árvore Kriminal”, Allen recebia propostas para actuar de graça em troca de bar aberto, os convites para concertos começaram a chover todos os meses – desta vez, pagos a preços que lhe permitiram, por fim, viver exclusivamente da música. Tornou-se presença assídua em salas como o Music Box, em Lisboa, ou o Hard Club, no Porto, esgotando qualquer uma com facilidade.

Numa altura em que as medidas de austeridade começavam a ser sentidas por grande parte dos portugueses e o país caminhava para uma situação de contestação social inédita para algumas gerações, houve quem procurasse nas letras de Allen Halloween algum sentido político. Além de ter sido convidado por partidos de esquerda para cantar em comícios e festas (o que recusou), o guineense também foi chamado para actuar sob a designação de “músico de intervenção” (o que aceitou, embora o concerto não diferisse dos seus restantes, em que a política não é tema).

A tentação de Allen Halloween

A caminho de deixar o jornalista no metro de Odivelas, minutos depois de se despedir dos amigos
com quem ainda há pouco discutia sobre a ética do disparo num café do bairro da Codivel, Allen olha para um poster verde do Bloco de Esquerda a apelar ao voto nas eleições para o Parlamento Europeu. “Estes gajos do Bloco até não eram maus ao início, mas depois começaram com merdinhas, aquilo foi tomado por intelectualóides… Não sabem como é vida das pessoas. Mas também eu já caguei nisso da política há muito tempo. Toda a gente sabe que a Bíblia diz que o homem não se governa a si próprio. Não é com os partidos que isto vai lá, temos de seguir é a palavra de Deus.”
Despede-se com um aperto de mão tradicional, bem mais simples do que aqueles que acabara de fazer à saída do café. Fica combinado um novo encontro no ensaio de Halloween com o General D, no dia seguinte. O músico segue em direcção a sua casa num andar bamboleante, sem aparente pressa.
No dia seguinte, tem o telemóvel desligado e não aparece no ensaio. No tarde do dia do concerto, liga e diz: “Aconteceram umas cenas por cá, estou com a perna toda fodida, o olho também está todo negro… Não vou ao concerto. Liga-me nos próximos dois dias e a gente combina qualquer coisa para conversarmos.”
Passam quase duas semanas até que esse encontro aconteça. Quando Allen Halloween desce do prédio onde fica o estúdio caseiro onde está a gravar o seu próximo álbum, mal consegue suportar o peso do seu corpo na muleta que segura na mão esquerda. Pouco se nota a negrura do seu olho direito, mas ainda coxeia de forma dolorosa da perna esquerda. Por fim, quando se senta, conta o que se passou.
Na noite em que deixou o jornalista no metro, estava pronto para regressar a casa mas teve de mudar de planos quando recebeu um telefonema de um amigo. Depois de um arrufo conjugal, a namorada deste pusera-lhe as malas à porta de casa e agora não lhe restavam grandes opções além de sair. Desanimado, pediu a Allen que fosse com ele até uma roulotte que serve cachorros quentes e bifanas noite fora em Odivelas.
Quando chegaram ao local de eleição para muitos noctívagos daquele cidade, Allen foi confrontado com a presença de um rival, alguém a quem nunca tinha conseguido conquistar o “respeito” de que tanto fala. Sem entrar em grandes pormenores, conta que o confronto que se seguiu, inevitável, resultou nas suas lesões. A princípio nem conseguia andar, mas nem isso fez com que fosse ao hospital, pois não queria dar justificações sobre como se tinha magoado.
Halloween conta este episódio sem qualquer ponta de orgulho viril. Antes pelo contrário, fá-lo com alguma vergonha.
Episódios como este não se coadunam com a mudança que Halloween tenta levar a cabo na sua vida há mais de dois anos. Começou quando a campainha da sua casa soou e, erguendo o comunicador até ao ouvido, escutou do outro lado: “Quer saber mais sobre Deus?” Respondeu afirmativamente.
“Eu já conheço a verdade de Deus desde os 13 anos. Desde essa altura que iam uns senhores que eram testemunhas de Jeová a minha casa ensinar a Bíblia à minha mãe e a nós. Só que eu depois parei de estudar, meteram-se outras coisas pelo caminho e eu deixei de ter concentração para aquilo. Mas Deus sempre esteve comigo e eu sempre soube disso.”

Desde essa altura que Halloween recebe todas as terças-feiras à tarde dois instrutores que lhe explicam passagens da Bíblia, ao mesmo tempo que pedem a sua interpretação. “Soube bem voltar a ouvir aquelas palavras. No fundo é como saíres da casa dos teus pais, ires dar uma volta para saberes se o mundo é como eles te diziam que era. Depois regressas a casa e dizes-lhes, ‘era mesmo como vocês disseram’.”
Desde há dois anos que Halloween faz um esforço para ser um pai exemplar, protegendo os seus dois filhos e educando-os segundo a Bíblia. A terceira criança vem a caminho. Embora não seja um homem totalmente pacificado, evocando muitas vezes na sua música e no seu discurso os “demónios” que o perseguem, o rapper tenta seguir com a sua vida para a frente. As visitas das testemunhas de Jeová são essenciais nesse processo, refere. “Tu quando chegas ali é como se começasses a lavar… Não há nada que mexer em cenas do passado. Eu quando leio a Bíblia, aquilo fala-me do futuro.”
Halloween fala da Bíblia com reverência, altura em que a sua voz ganha uma serenidade em tudo diferente daquela que ouvimos em “Um dia na vida de um drede de 16 anos”. De resto, o “livro sagrado” é algo em que fala com muito mais interesse e profundidade do que quando refere o seu próximo álbum, “Híbrido”.

“Uma cena que a Bíblia me fez ver é que o Homem não se governa a si próprio. Isto tanto se aplica aos líderes políticos como a todos nós, que achamos ser líderes de nós próprios. Mas não podemos esquecer que todos os líderes estão sob o controlo de Satanás, porque ao se acharem merecedores desse privilégio, estão a contrariar a vontade que Deus exerce com o seu governo. Eu não quero mandar em mim, quero que seja Deus a tomar conta do meu destino. A Bíblia conta que a terceira tentação de Cristo foi quando o Diabo lhe ofereceu todos os reinos do mundo. Podia mandar naquilo tudo, ser um líder. Mas não quis. E eu também não quero.”
Halloween parece ter a lição bem estudada, as palavras saem-lhe de forma organizada e coerente, quase como se estivesse ensaiado. Ainda assim, é-lhe perguntado que implicações é que isso tem na sua vida em particular. É célere na resposta.

“’Tás a ver esses reinos que o Diabo ofereceu a Cristo? A música pode ser um deles. A música pode ser uma tentação (…). O mundo da música envolve estares com elementos da tua banda que estão noutra onda, ‘tás a ver? Sei lá, acabas o concerto e só queres dar a fuga para o hotel, queres estar sossegado. Mas, por exemplo, se calhar o teu baterista quer dizer que sim a quatro gajas que estão a oferecer-se para irem para os nossos quartos. Isso pode fazer-te tropeçar, e tropeçar grave. Há muitas tentações no mundo da música. Álcool, droga, mulheres, fama… É nesse sentido em que eu quero deixar a música.”
Halloween já tem o plano traçado. Em Agosto de 2014 lança “Híbrido”. O título do álbum deve-se a duas razões. A primeira, porque ao longo da produção do disco tentou misturar a sonoridade que tem no primeiro álbum com a do segundo, encontrando uma junção perfeita entre as batidas fortes e perturbadoras com os conhecimentos que a experiência traz. Mas é a segunda razão que tem mais importância, aos olhos de Halloween. O álbum chamar-se-á “Híbrido” para que, tal como os animais híbridos, este nunca se reproduza. Depois deste, não haverá mais nenhum.
O que acharão os fãs?

“Eu não gosto da palavra fã. Eu só sou fã de Cristo… Aliás, nem é de Cristo, eu sou é fã de Deus. De resto, os fãs não interessam assim tanto, pelo menos para mim. Se tu metes na cabeça que és o maior, deixas de ter espaço para outras coisas. É uma coisa que dá cabo de ti. E há coisas que são mais importantes na vida. A música não é nada quando se compara com a importância dessas pessoas que estão aí na rua a bater às portas e a dar testemunho de Deus. Eu quero dar testemunho como eles, quero espalhar a palavra do Senhor. E para isso acontecer, tenho de deixar de andar nesta vida.”
Nessa altura será apenas Allen Pires Sanhá. Pensa montar um negócio, “qualquer coisa que dê algum dinheiro sem dar grande trabalho”. A alcunha ficará para trás, juntamente com os seus demónios. “Deus queira que sim.”
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